20 de ago. de 2007

Terreno baldio - A parede

A parede

Odiava aquele sorriso.

Detestava, aliás, ela inteira que não respeitava os dias de luto que ele julgava necessários em situações como aquelas.

Ria e falava alto e saía com as amigas. E ele, que fingia estar bem, mas bebia e fumava agora todos os dias, sentia-se sozinho. Não conseguia pensar em nada mais triste do que um homem que se sente sozinho.

Ia trabalhar invariavelmente bêbado.

Chegava em casa ainda tonto para terminar a outra metade da garrafa de vodca. Bebia tudo. Meia garrafa e meia por dia.

Preferia aquilo a estar sóbrio e chorar apoiado na parede do quarto onde costumavam fazer sexo. Na mesma parede em que tirava a roupa dela, suspendia-a pelas pernas e mordia cuidadosamente o seu pescoço; naquele canto em que apoiava os cotovelos e subia a mão por trás da sua nuca, segurando-a devagar pelos cabelos pretos. Ela fechava os olhos e levantava a cabeça. Era a parte do dia em que ele sabia o que estava fazendo.

Agora não sabia de mais nada.

Ela ligou, sentiu falta de um disco. De um disco e não dele, do sexo, do quarto, da parede. Nem da parede nem do teto. Nada.

Ele saiu na hora em que ela disse que viria. Atravessou a rua até o posto de gasolina para comprar cigarros, apesar de não fumar. Voltou devagar.

Ela estava parada à porta. Já devia ter tocado a campainha umas três vezes, imaginou, pelos suspiros de impaciência que soltava, sem perceber que ele subia tropeçando pelas escadas.

Ué, tá fumando agora? Sorriu, dissimulada, e beijou-o no rosto, mais para perto da orelha do que da boca. Esperou que abrisse a porta e entrou pisando no chão devagar, como quem vai à igreja. Parou.

Do vestido ele não gostava, mas o perfume era o do cheiro de baunilha. Dava mesmo vontade de mordê-la.

Era esse o disco? Era. Brigada.

Saiu rápido, desta vez sem o beijo da entrada. Quase não olhou para ele, quanto mais para a parede do quarto onde tinha dormido há quatro dias.

Saiu e, dez minutos depois, ele também. Voltou a atravessar a rua.

Vodca? É.

Atravessou de volta, ainda mais devagar do que antes. A rua suja, garrafas, papéis, camisinhas usadas, uma barra enferrujada. Tropeçou, abaixou-se para pegá-la. Pensou em jogar a garrafa para cima, esperar que caísse, bater nela com o ferro, chuva de álcool. Desistiu.

Abriu a porta, jogou a barra no chão. Copo, gelo, vodca. Sentou, desta vez, de frente para a parede, na parede oposta. Bebeu rápido. Mais de um copo. Meia garrafa. Copo, gelo, vodca. Garrafa.

Deitou, esperou o sono da meia garrafa. Não veio. Levantou-se, correu até a sala. Copo, vodca. Pegou o ferro, jogou o copo. Vodca.

Cambaleou até o quarto, apertando a barra com a mão esquerda. Parou diante da parede e enxergou vultos dela olhando para o teto. Olhou também, perdeu o equilíbrio. Voltou a olhar para a parede.

Bateu com violência na parede, na porta e na mão direita trinta e sete vezes até ter vontade de parar. Parou.

Caiu. Deitou. Sentiu cheiro de sangue, esperou o sono.

Dormiu.
Pedro de Oliveira

3 comentários:

Anônimo disse...

Good! - Primeiro o elogio.
Pq as pessoas não comentam? Pq n fortalecem a iniciativa? Muitas vezes os textos não são algo q necessite de resposta, muitas vezes sim.
Como me conforta um espaço de palavras e tenue anarquia. Estou no balde.

Um abraço aos amigos e caras.

nasatto disse...

muito bom
profundo e tocante

quero conhecer mais sobre o blog

abraço

Anônimo disse...

simplesmente maravilhoso!!! nossa realmente nos prende e nos faz viver o momento e sentir as emoções expostas pelo autor!!!lindo e tocante.