22 de out. de 2007

Terreno baldio - Anestesia

Anestesia

Assistia TV enquanto pintava suas próprias unhas. Estava sentada no sofá. As pernas formavam um V ao contrário, sendo os joelhos os vértices. Os pés apoiados em um banco qualquer. Ele se arrumava. Ela não conhecia a ocasião e no fundo, no fundo, embora admitisse um fio de curiosidade, preferia não saber.

Havia uns cinco dias que ele batera à sua porta. Ainda não tinham se tocado, sequer se encostado, por crueza dela. Não sabia o motivo da visita dele, mas a ela bastava saber que ele havia chegado. Não tinha curiosidade em motivos e, naquele momento, não tinha curiosidade em saber por que ele tanto se arrumava.

Ela não gosta das possibilidades. Não abre e-mail por causa da possibilidade de ninguém ter escrito. Não liga o telefone por causa da possibilidade dele não tocar. Há anos vivia em fuga das possibilidades e, quando ele batera à sua porta, não abriu nem uma ponta de possibilidade para ele.

Preciso de um lugar pra ficar.
Fique à vontade.
Você não quer saber por que eu vim?
Tá tudo bem.

Ela não quer saber da possibilidade de ele estar ali por ela. Ele não estava ali por ela. Ele batera à sua porta porque tinha ido a São Paulo para participar de umas quatro entrevistas de emprego. Se conseguisse algum, ele arranjaria um apartamento e, provavelmente, não existiria a possibilidade de eles continuarem se encontrando. Ele sabe que ela foge das possibilidades. Ele nem sequer tenta. Mas já que precisava de um lugar para ficar e nada melhor do que a companhia dela, ele bateu à sua porta.

Dois dias depois que ele já estava hospedado no sofá, ela começou a sentir que ele insistia nas possibilidades. Perguntara se ela estava saindo com alguém, como ela estava financeiramente, se ela tinha algum plano na vida, se ainda tinha sonhos ou se estava satisfeita morando sozinha naquele apartamento.

Mas ela sabia muito bem que ele não estava ali por ela e sim pelas possibilidades de emprego e que, caso ele conseguisse algum, eles não continuariam se encontrando. Por isso nem pensou na possibilidade de lhe contar seus possíveis sonhos ou se estava satisfeita com aquele apartamento.

Ele não agüentava aquela frieza e falta de possibilidades. A falta de cerveja na geladeira por causa da possibilidade que ela tinha de se embebedar. A falta de chocolate no armário acima da pia por causa da possibilidade de engordar. A falta de TV a cabo por causa da possibilidade de deslumbrar-se com os enlatados americanos. E agora, enquanto ela pintava as unhas, ele se arrumava para ir embora. E sabia o quanto ela estava pensando na possibilidade dele estar saindo pra sempre ou se era apenas mais uma entrevista.

Foi quando ele olhou ao lado do banco em que descansavam os pés dela.

Sapato virado morre a mãe.
Eu já não conto mais com essa possibilidade.
Você calça trinta e quatro?

No passado ele nunca tinha sequer olhado para o pé dela para saber o quão pequeno era. Ela pensou nisto enquanto olhava para ele sem responder ou ter qualquer reação.

Ele olhou para os pés dela. As unhas não estavam pintadas. Ele se ajoelhou em frente aos pés. Beijou. Lambeu os dedos, o peito do pé, amassou as solas do pé, mordia. Ele comia aquele pé. Não era um gesto de todo sexual, mas ele se dedicava àquele pé com a intensidade que ele se dedicaria se estivesse dentro dela.

Ela continuou sem responder ou ter qualquer reação. Apenas olhava para os movimentos dele que passavam entre os dedos e em menos de instantes estavam em umas das canelas, as mãos dele não paravam de se dedicar aos pés, subiam nas pernas. Essa possibilidade ela nunca sequer havia cogitado.

Ele parou. Estava com os dentes em um dos calcanhares. Olhou.

Nunca reparei como seus pés são pequenos.

Ela continuou sem responder ou ter qualquer reação.
Ele levantou e saiu.

Beatriz Leal (por e-mail)

2 comentários:

Rejane Saraiva disse...

Muito legal. Sensitivamente descritivo.
Gente, vcs já viram os pés do Isomura? São lindos!

Anônimo disse...

Rejane,
muito obrigada pelo comentário!

e à equipe do Balde, mto obrigada pelo espaço concedido! o clima cultural aqui é muito bom!